segunda-feira, 26 de março de 2012

Resolveu assistir ao show. Ao tão falado e aclamado espetáculo de bonecos. Toda a cidade suspirava pelos cantos, bonecos tão lindos, mexiam-se por mágica. Arrumou-se com a sua melhor porcelana e foi. Esperando levantarem as cortinas, foi tomada por náuseas, respirou fundo e tentou se conter. Eis que aparecem os primeiros bonecos, lindíssimos. Mas ao mesmo tempo sentiu o seu jantar novamente na língua e a muito custo engoliu tudo novamente. Olhou para os lados, ninguém mais parecia sentir aquilo. Assustou-se com os olhos brilhantes, vidrados e as caretas de alegria. Mais bonecos apareciam e a plateia se transformava em um único gemido de satisfação. Levantou-se e correu, na calçada viu seu jantar reduzido à lama, tentou se recompor, com muito esforço retornou ao seu lugar. No entanto, sequer conseguiu se aproximar, sentiu novamente a ânsia. Sentiu tocarem-lhe o braço e ao virar foi conduzida até uma pequena sala.
"Saiam da minha frente, eu já não aguento mais!"
E ouviu os sons e o cheiro característico. Viu o conteúdo pingar de uma pequena bolsa, a qual foi colocada dentro do boneco, que como mágica movia-se e fazia pequenas reverências.
"Eles não conseguem sentir o cheiro, estão muito ocupados com nossos bordados brilhantes."

sábado, 24 de março de 2012

Tolice

Pare de pensar nisso, meu bem. Não existe algo a ser procurado, muito menos a ser encontrado. Esqueça essas tolices provincianas, elas não servem senão para magoá-la. Deixe de bobagens e aproveite. Não existe motivo superior para que nasça o sol todos os dias, muito menos os motivos que você quer. Não, não chore. Falo a verdade apenas para pintar um sorriso. Cuspa esse veneno. Eu sei, parece bom, mas não é. Esqueça de uma vez isso tudo e deixe-se levar. Porque deveria submeter-se a essa busca por lugar nenhum? Retire esse ranço e perceberá que jamais precisou dele. Não espere muito, não fantasie muito. Tudo vai melhorar. 

sábado, 17 de março de 2012

Ela corria pela praia. Seus cabelos dançavam com o vento, seus pés dançavam com a areia e areia dançava com toda ela. Ria e sua risada reverberava, entrava nos sentidos mais ocultos e ali instalava morada. Ria porque corria. Ria porque amava. A cada passo ele parecia alcançá-la, suas mãos tateavam o vento e só encontravam areia. A cada passo ele devorava, mas só cuspia areia. "Venha, venha minha menina, venha brincar de amar", repetia ele em mil ritmos diferentes, mil passos já tinha dado desde então. Corria, lançava os braços, amores, beijos, sua alma. Corria mas não a alcançava.
Acordou cansado, acabado, em sua cama mesmo. Puta solidão. Olhou para o lado, logo farejou. Farejou o cheiro do mar, sentiu na mão os grãos de areia, fios do cabelo dela. Mas onde estava? Não saberia, jamais saberia. Deixou-se estar na cama, tomado pelo desejo de devorá-la. 

sexta-feira, 9 de março de 2012

Someday

O quarto parecia tão vazio. Era como se todos os móveis tivessem sido retirados, vazio. As paredes pareciam tão brancas e a cama não tinha colchão. O chão empoeirado pela ausência de qualquer pessoa. Sentado em um canto, abraçando os joelhos e remoendo o passado. O whisky de repente era a coisa mais doce que poderia existir. Seus olhos ardiam e simplesmente não poderiam deixar de arder.
De repente uma epifania. Foda-se aquela vadia, pensou. Quebrou a garrafa na parede, só para feri-la, queria deixá-la pior do que ele estava. Olhou ao redor novamente, o quarto não estava vazio. Na verdade os únicos objetos que faltavam eram as roupas dela espalhadas, seus cosméticos, sua escova de dentes no banheiro e é claro, ela. Não tinha vontade de deitar na própria cama, embora de solteiro ela tivera servido melhor do que uma de casal. Isso era evidenciado pelo cheiro dela. Percebera que todo este tempo fitava algo no travesseiro. Um fio longo, longo e avermelhado. Falsa vadia ruiva, eu sei que ela não era ruiva...
Gostaria de ter o poder de queimar as coisas com os olhos. Poderia ver ir embora então aquela evidência, evidência de poucas horas atrás. Não, não foram poucas horas atrás. Foram meses, meses em que ele não sabia mais se tinha corpo próprio, tão colados permaneciam. Ela não ficava úmida. Toda ela era constantemente úmida, sempre derretendo ao seu toque, sempre beijando-o como se quisesse sorver a sua alma.
Pegou o travesseiro e o atirou longe. Viu-a bater com a cabeça na parede e escorregar, meio zonza. Puxou-a pelos cabelos, tinha vontade de arrancá-los todos. Virou-a para si e encheu seu rosto de tapas. Já não mais ouvia os gritos, as lágrimas. Apenas se deliciava com sua ruiva falsa virando uma máscara de sangue. Ria encolerizado, tome isso sua vadia.
E só restou o enchimento do travesseiro. Bobo, olhou ao redor para a bagunça que fizera, procurou por mais whisky, droga até isso ela me roubou. Estava magoado, pensava em voltar a fumar, mas a verdade é que ela tinha sido boa o bastante para fazê-lo esquecer do vício. Boa o bastante para fazê-lo viciar nela. Decidiu se render, chega. Estou na pior, continuarei na pior. Só iria melhorar se ela voltasse.
Saiu trombando pela porta. Inebriado, com a garrafa quebrada em mãos. Parecia um louco, por sorte era uma da manhã e não havia ninguém nas ruas. Vazio, vazio como o quarto, vazio como o coração. Chegou à casa dela, escancarando a porta. Parou e vislumbrou-a, sem pensar cravou a garrafa, sentiu-a quebrar e cortar suas mãos.
Viu-a quebrar na lápide. Viu-se quebrar por dentro. Mas estranhamente não queria recolher os pedaços.
Não mais. 

Medo

Eu estou com medo. Sim, por favor, espere minha explicação. A angústia acabou de passar, avisou que o medo viria logo após e traria algumas lágrimas. Sim, eu estou com medo. Avisaram que talvez eu não seja mais a mesma amanhã, avisaram que eu poderia estar só amanhã. Não adiantarão explicações, você não compreenderia...
Talvez eu esteja errada, talvez você compreenda. Você já amou alguém? Na verdade, seu mundo já foi virado de ponta-cabeça por alguém? E essa pessoa, ela já compreendeu você e mesmo assim soube castigá-la como merecia?
Você já teve muito medo dessa pessoa ir embora assim, sem mais nem menos?
Eu estou com medo.
E sim, você não compreendeu. Não fez sentido. Não é para fazer.